A CULTURA DO MILHO E A PASTORÍCIA

 

O milho é uma planta da família das gramíneas, oriunda da América do Sul, de valor alimentar. Actualmente é semeada em quase todos os países do mundo e constitui um dos principais componentes da dieta humana, sobretudo em países subdesenvolvidos. Foi trazido para a Europa no início do século XVI, pelos navegadores.

Com a descoberta da América, generalizou-se o cultivo do milho por toda a Europa, passado o mesmo a ser a base fundamental da alimentação do povo do Piódão, em detrimento do centeio, muito embora tivesse chegado à Península Ibérica muitos séculos depois.

O milho não se dava em qualquer lado como o centeio. Este cereal veio alterar totalmente o modo de vida de todas as famílias da região do Piódão, ficando as mesmas acrescidas de um trabalho exausto que envolveu as gerações futuras. Pois este cereal, ao contrário do centeio, necessitava de muita água para o seu desenvolvimento e, sendo o terreno rochoso e escarpante, houve então a necessidade de o transformar em terreno mais ou menos plano. Para esse efeito, os homens lançaram-se na construção de elevadas paredes formando socalcos ou cômbaros, extensas e serpenteadas leiras ao longo das encostas e margens das ribeiras, para sustentar as terras quando eram regadas.

Para regar as terras, foi também necessário proceder à construção de longas e inúmeras levadas que conduziam as águas até aos confins das leiras.

Foi um trabalho árduo e exausto, arrancando a rocha à custa do seu braço, mas hoje são a relíquia do passado glorioso deste povo que lutou incansavelmente pelo seu sustento e, são ainda pela sua frontaria panorâmica, uma característica apreciável do Piódão contemporâneo.

A produção do milho envolvia toda a família dum lar, ao longo de todo o ano, numa lide constante. O trabalho era então uma cadeia: - primeiro havia a necessidade de arranjar estrume, a que o povo chamava "esterco", pois este era fundamental a par da água para o seu desenvolvimento. Para haver esterco, havia a necessidade de ter uma cabrada para amassar o mato, este era roçado com um instrumento chamado "podão", nas encostas e por vezes no alto da serra, depois era atado em molhos com uma corda e transportados às costas das pessoas, descendo grandes ladeiras até aos currais. Depois de ali chegarem, descansavam alguns minutos e faziam a ordenha das cabras. Feita a ordenha, o mato era colocado na loja onde servia de comida e cama para os animais durante a noite, quando regressassem ao fim do dia da pastagem.

A pastorícia, era feita pelo elemento mais novo da casa, com cerca de sete ou oito anos de idade, o qual partia com a cabrada para a serra, logo após a ordenha e, por lá andava até ao pôr-do-sol apenas com uma fatia de pão na taleiga[1]. Contudo, no Verão, ele via a sua merenda melhorada com o leite de alguma cabra que ia sempre por ordenhar.

O resto da família dedicava-se às lides da agricultura, preparando o estrume, este era acarretado[2] para as leiras e mais uma vez às costas, único meio de transporte possível nas terras do Piódão e, ali ficava em monte durante o Inverno a curtir.

Em Março, no princípio da Primavera, começavam as sementeiras. Em primeiro lugar o esterco era espalhado nas leiras, começando de seguida a cava das terras que era feita à força da enxada e do braço do homem; atrás dos homens, as mulheres deitavam o milho à terra e com pequenos sachos, chamados sacholas, atopiam o milho, ou seja, envolviam ligeiramente o milho com a terra. Estes trabalhos eram acompanhados de muita alegria, os homens cantavam em coro o "Aleluia da Páscoa" e outras canções populares, as mulheres atrás deles, também faziam o seu folclore.

As sementeiras eram um trabalho duro e cansativo, mas era nesta época do ano que estes homens comiam melhor; pois toda a gente guardava durante o ano o que tivesse de melhor, para dar a comer nesta altura às maltas de cavadores. Comiam cinco vezes ao dia: de manhã antes do nascer do sol a dejua[3], às dez horas o almoço, ao meio-dia o jantar, à tarde a merenda e à noite a ceia.

Terminada a sementeira em fins de Maio, começava a sacha do milho temporão[4]. Na meada do mês de Junho começava a enleira que era a primeira rega, a mesma consistia primeiramente em alisar a terra e espalhar o esterco grosso no meio das caneiras do milho, para de seguida se fazer a enleira, calcando o esterco e a terra de modo que a água corresse por toda ela. Este trabalho, tal como a sementeira, era feito em grupo de mulheres e homens. O "cortador da água"[5] era sempre o mais esperto da malta e o trabalho desenvolvia-se mediante a velocidade do cortador.

Depois da eleira, começava o ciclo das regas que eram feitas pelo Verão fora até ao mês de Setembro. A rega era um trabalho individual, normalmente feito apenas por um elemento da família, nos dias da andada[6] ou giro que lhe tivesse sido atribuído, por uso e costume ou por escritura pública que regulava os dias ou horas de cada regante dessa levada. Em Setembro começava a recolhença do milho, tal como a sementeira a recolhença também era feita em comunidade, ajudando-se uns aos outros, como forma de pagamento em virtude de não terem dinheiro para se remunerarem. Sentados nas leiras em volta do monte de maçarocas, começava a descamisada ou desfolhada que era feita ao desafio para ver quem encontrava primeiro a espiga de "milho rei", o que raramente acontecia. Mas, caso aparecesse era uma alegria, quem o encontrasse tinha de dar um "chi" a todo o grupo. Um "chi" era um simples abraço, porque um beijo não se podia dar, pois esses eram considerados um pecado mortal, no entanto esse chi era muitas vezes o começo de um namoro ou casamento. Em contrapartida, hoje um beijo é dos actos mais banais entre os humanos. Depois da descamisada vinham as debulhas, estas eram feitas à noite, depois da ceia, nas palheiras junto aos estendais do Outeiro, onde se juntava o mesmo grupo da descamisada que por vezes era reforçado. Os homens malhavam o milho com pequenas estacas de madeira, embora noutras localidades houvesse quem o fizesse nas eiras com manguais. Os malhadores sentavam-se em cima da tulha do milho, ou ao lado e colocavam as espigas entre as pernas, batendo a estaca com força, fazendo saltar os grãos do casulo. Em volta da tulha sentavam-se os passadores, regra geral, eram as mulheres, as crianças e os idosos, os quais passavam todos os casulos um por um, roçando-os uns nos outros tirando algum grão que tivesse escapado à estaca. As debulhas, eram um trabalho leve mas muito moroso e saturador, porque era feito ao serão, nas horas de descanso nocturno e, quando eram grandes debulhas muitas pessoas adormeciam, o que originava uma paródia, atirando casulos aos que dormiam.

No final, o cansaço era tanto que acabavam todos por adormecer, recomeçavam novamente quando alguém acordava. As crianças eram quem mais apreciava as debulhas, pois era nestas reuniões de trabalho comunitário que se contavam as lendas, as histórias de bruxas, princesas, mouras encantadas, tesouros, lobisomens, que eram transmitidas de geração em geração.

E para terminar, havia quase sempre uma panela de castanhas cozidas, o garrafão do vinho a acompanhar ou o célebre "champorrião" feito de aguardente com bastante mel, não sendo este regra geral, dado que nem todos eram apicultores. Todos ficavam deliciados e a esses nunca faltavam debulhadores.

Na manhã seguinte ao dar do Sol, os donos do milho levavam-no para a eira ou estendal, onde era espalhado em mantas de fitas sobre palha de centeio, evitando-se assim o contacto directo com a terra e haver uma secagem mais rápida. A secagem do milho demorava três a quatro dias, e depois era guardado em grandes arcas de madeira, de onde era levado para o moinho dentro de um "sarrão"[7], onde era moído e transformado em farinha para seguidamente ser cozida a broa que era o pão nosso de cada dia, pois em casa onde não houvesse broa, já não havia alegria.

Os excedentes do milho, eram aproveitados: os folhos ou folhelhos, que são a parte envolvente da espiga, eram utilizados para encher as fronhas e os colchões onde se dormia; os casulos ardiam na lareira; o carpelo[8] e as folhas serviam de comida para o gado no Inverno.

A zona agrícola do Piódão ocupa toda a área ribeirinha. Quem está no Piódão não faz ideia das terras agrícolas que estão escondidas atrás dos outeiros e vales. É curioso ver a imensidade de currais de cabras, alguns agrupados parecendo outras aldeias para além do Piódão ou dispersos junto às fazendas. Esses currais eram e são compostos de loja térrea, para alojamento dos rebanhos, e o primeiro piso para guardar o pasto seco que servirá de comida para o rebanho durante o Inverno, mas também servia para guardar algumas ferramentas agrícolas. Muitos deles, os mais distantes, serviam de habitação nas épocas de maior actividade da azáfama da agricultura.

Havia à volta de quatrocentos currais de apoio às propriedades. A área agrícola do Piódão era muito extensa, pois começava a jusante da Serra, no Ribeiro do Bago, e prolongava-se por mais de cinco quilómetros até à Foz d'Égua.

Este esclarecimento, sobre o cultivo das terras e dos cereais no Piódão é fundamental e precioso para as gerações vindouras, porque está prestes a desaparecer no contexto agrícola das terras do Piódão.


[1] Taleiga – Pequeno saco feito de pele de cabra.

[2] Acarretado – transportado.

[3] Dejua – pequeno-almoço.

[4] Temporão – que se semeava mais cedo.

[5] Cortador da água – pessoa que abria a água com uma pedra.

[6] Andada – período de rega, distribuído por várias fases.

[7] Sarrão – Saco feito de pele de cabra, utilizado no transporte do milho para o moinho e no regresso a farinha.

[8] Carpelo – Folhelho que envolve a espiga do milho.

 

 


 

 

excerto do livro:

PIÓDÃO

Aldeia Histórica, Presépio da Beira Serra

 "Historia, Lendas e Tradições"

de

José Fontinha Pereira

(Edição do Autor)

 

 

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